Como quem folheia um velho livro tafulhado na estante, me lembrei dele. O sujeito poderia, um tempo atrás, ser descrito como "página-virada". Uma lembrança fugaz, um troço que voltava à mente para fazer-me sofrer lânguida, desenfreadamente mergulhada em ópio. Agora, o fulano, que já tinha nome na minha lembrança - Fabrício -, revelava-se como literatura. Eu observava a brochura, sentia o cheiro das folhas, reconhecia cada parágrafo e me deslumbrava com tudo o que me vinha à memória.
Curiosa analogia. Um pequeno sinal, um livro e tantos significados. Quanta singularidade no pequeno istmo que separa homens de palavras escritas. Concentrei-me nos aspectos superficiais. A capa dura do livro era mesmo a face do sujeito. Os dedos precisavam exercer uma certa força para levantar aquele papel feito de tantos outros papéis. E me pareceu ser, de certo, uma fachada pesada, corroída pelo tempo, com as cores já esmaecidas, perdendo o brilho e o fulgor. E imaginei aquele rosto belíssimo, notável, coberto pela poeira de tantos anos. Onde se perdera?
Detive-me na textura do papel. Vários toques foram necessários para que eu dispusesse da sensação exata de folhear aquela publicação. Como quem sempre buscou a interação com a pele, como quem sempre se perdeu em contatos inoportunos e, mesmo assim, vastos. Era papel liso, mas em alguns pontos destruído pelas traças, pelo desgaste de tanto tempo de inércia e confinamento. Folhas e mais folhas numa seqüência lógica, carregando histórias, entretendo os "passageiros", pulverizando as personalidades mais descrentes. E o papel era a derme, a sensação primeira de um mergulho muito mais profundo.
Exalava um cheiro singelo. Como na primeira vez em que sua boca chegou mais perto; aquele momento quando sabemos se será ou não será, se a flor vingará ou não exuberante, viçosa. O bolor concentrado ali não havia eliminado o perfume de cada momento especial. O odor remetia aos gostos, aos sabores primários, às sensações do paladar. Lembrei-me, já entorpecida, dos lábios meus deslizando nos pêlos daquele homem. Era quase uma sabatina de corpo!
Que sedução o momento! Os olhos encharcados, uma interação verdadeira. Eu olhava o livro como quem olhava para um ser. Todas aquelas peculiaridades aguçando os meus sentidos - diria que até o sexto -, me envolvendo em uma mistura absurda e deliciosa, onde eu me sentia capaz de imaginar histórias bárbaras, de criar e de me submeter a um estado de "coisa", como são os livros já esquecidos nas imensas bibliotecas da vida.
Cativada, direcionei o olhar para cada palavra ali impressa. As cenas na mente, as possibilidades, a excitação, a ansiedade, detalhes, descrições... um refúgio. Senti a liberdade correndo pelas veias. Como era impressionante reaver toda a emoção de uns anos tantos estampada naquelas páginas, rememorando delícias. Cada parágrafo, imenso ou curto, fazia-me completa, trazia à tona todas as particularidades de uma certa época. Percebi que as mudanças eram evidentes, que a vida tinha se encarregado de fazer de mim uma eterna metamorfose, assim como fazia com aqueles de quem eu havia me desencontrado ao longo do percurso.
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